lívia rangel

29 de janeiro a 7 de fevereiro de 2022
Lívia Rangel é historiadora em travessias e diálogos com as linguagens artísticas dentro e para além da escrita. Suas sensibilidades de pesquisa estão há vinte anos impregnadas pela busca em compreender a emergência dos feminismos em consonância com a própria (re)elaboração dos sujeitos da feminilidade num movimento “mutuofágico” pendular que não cessa os desdobramentos. Interessada na trajetória de mulheres artistas em uma chave epistemológica feminista pluriversal, percebe as biografias como peças de memória para o conhecimento em amplitude, perseguindo especialmente as experiências metafóricas e literais do pertencimento e do exílio. Doutora em História pela USP e doutoranda em Artes Visuais na UFBA, pesquisa atualmente mulheres fotógrafas na América Latina no período das vanguardas. Além de pesquisadora, escritora e docente, organiza e atua em uma rede colaborativa de mulheres nas mídias sociais dedicada à curadoria de conteúdos referentes à produção de mulheres na escrita e nas artes, com publicações no perfil @mulheresdeescrita.
January 29 to February 7, 2022
Lívia Rangel is a historian, in crossings and in dialogues with artistic languages within and beyond writing. For twenty years, her research sensibilities have been permeated by the endeavor to comprehend the emergence of feminisms in consonance with the (re-)elaboration of the subjects of femininity in a pendular, “mutuophagic” movement that never ceases to unfold and extend. Interested in the trajectory of women artists in a pluriversal, feminist epistemological key, she perceives biographies as pieces of memory for knowledge in amplitude, especially seeking out metaphorical and literal experiences of belonging and exile. She holds a doctorate in History from the University of São Paulo and she is completing a doctorate in Visual Arts at the Federal University of Bahia, where she is currently researching women photographers in Latin America during avant-garde periods. In addition to being a researcher, writer, and educator, she organizes and is active in a collaborative network of women on social media dedicated to curating content related to works by women in writing and the arts, with publications on the profile @mulheresdeescrita.
Genoma
vídeo-verbo por Lívia Rangel
saí de onde
era chama
presa no copo
o corpo de vidro
no copo
em chamas
a fuga do fogo
quem viu alguma vez
o fogo pegar estrada
sabe que é onde vive
o código genético dos
astros que o fogo
sai em busca
Cheguei ali já era ontem
tudo o que tinha fica atrás de mim era futuro
a pressa se corrompeu no nevoeiro
tudo o que tinha ficado atrás de mim era futuro
o sentido do sentido da vida finalmente revelado
não há estrada que não acompanhe um rio
não há rio que não percorra uma estrada
sobre a minha cabeça um céu-imaginário
profecias de água na terra de pedra
a pedra que se tira do lado
o som do barulho nenhum que tinha
ficado para trás
no futuro atrás de mim
tinha dores no estômago
desconhecia as ervas que curam
no estômago o futuro doía
no estômago a dor do futuro
o tóxico do futuro no estômago
a peleja do meu corpo futuro
presente meu corpo no passado
era como livrar-me do veneno
de uma anticura
rio é artéria em cochichos
com a pedra
artéria descendo o corpo
mapas de genomas
ComparTRILHAmento I, por Lívia Rangel
Um fluxo de caminhões no asfalto, eu no canto da estrada. Há 250 km/h o bicho de aço e pneus grotescos esmagou o que eu sabia de mim àquela altura. Triturou minha espessura óssea e derramou óleo quente nos meus olhos. Caos e destroços. Com as duas mãos firmei uma arma, apaguei as luzes e espreitei a sombra no terreno baldio. Quando me reduziram assim a escombros saltei para onde não pudessem me achar. Mas foi aos oito anos de idade que caí pela primeira vez no abismo do desamparo. Menino-macho, virou-se desoprimido e, afrontado na sua masculinidade prematura, revidou ao beijo que não lhe dei. Cinco dedos atravessaram a película do meu rosto. Queimadura. Lança-chamas. Ainda arde a dor subcutânea. Minha avó foi proibida de ser professora. Morreu semianalfabeta lembrando do primeiro amor. Eu quero saber quando a violência deixou (e deixará) de moldar a personalidade das mulheres? Transmuto – desenraizada e implícita, grávida de filho nenhum. Os planos que alimentei e segui foram fabricados nessas dissonâncias. Eu queria ser o avesso. O projeto rebelde de uma sociedade falida em seus vícios cacofônicos, onde a pessoa mulher, reduzida a um amontoado de frustrações, inibida pela rotina do cuidar, lentamente vai se tornando a figura apagada nas fotografias dos álbuns de família. Não sou artista. Talvez seja. Eu queria desde menina me amalgamar nas letras enciclopédicas. Escritora talvez das narrativas de histórias antes de mim nascidas. Galguei carreira escorregadia estudando o que as mulheres haviam feito para reagir aos jagunços do patriarcado. Não gosto da palavra patriarcado mas ela existe e com ela fazem misérias. Tornei-me incorrigível e quando escrevo é o breve fim das tormentas. E não há nada cristalino, só palimpsestos e polímeros. Fiz a curva e caminhei outro tanto. Condensar palavras em imagens. Olhar nos olhos e observar as mãos, os pés, as tintas da pele, o bocejo da vida, o trabalho, o tráfego sanguíneo, os gestos desmemoriados. Talvez eu seja artista das incompletudes. Lembro agora das mãos na costura, na reza, das mãos sujas de giz, das mãos abatidas, das mãos na colheita, da roupa engomada, das mãos na sola dos pés.
ComparTRILHAmento II, por Lívia Rangel
– ¿Quién es Tina Modotti?
– La novia de Mella.
– He preguntado quién es y no de quién fue novia.
– ¿Quién es Tina Modotti?
– Una fotógrafa brillante.
Tina Modotti e Walter Benjamin poderiam muito bem, caminhando por Paris em algum momento de suas vidas, terem se esbarrado, talvez se reconhecido. Uma artista fotógrafa e um teórico e crítico de arte contemporâneos um do outro, que partilharam filosofias e ideologias políticas, mas que, até onde se sabe, nunca se conheceram pessoalmente. O que diria Tina Modotti a Walter Benjamin? E ele, o que diria? Para além das curiosidades que aproximam dois desconhecidos, é possível que ambos falassem de arte e política e chegassem a uma discussão sobre a compreensão moderna da fotografia, especulações que me atrevo a fazer não só para exercitar a imaginação como para tensionar os inusitados. Imaginar um encontro como este é ficcionalizar a partir de coexistências e planos de fundo, unindo a artista que é um dos meus focos de pesquisa e o autor com quem dialogo para pensar as estéticas vanguardistas no universo da linguagem fotográfica. É como roteirizar com personagens extremos, que saem e avançam de lugares sociais diferentes, que combatem desde posições distintas e que, no entanto, atraem-se como se fossem feitos da mesma bioluminescência. Se Benjamin nasceu no seio de uma família judia rica e influente na Berlim do final do século 19, Tina Modotti cresceu rodeada de referências proletárias em uma família numerosa de um pequeno vilarejo italiano. A vida confortável de um e as condições de sobrevivência precárias do outro, apesar de contrastante, influiu para que ambos se interessassem pelo socialismo como ideal político. A aproximação cada vez maior com o pensamento marxista e com as fileiras partidárias do comunismo foi o passo seguinte. Aqui, justamente, Tina Modotti e Walter Benjamin se separam – ela imersa na militância política, ele simpático, mas reticente. Neste ponto exato prevejo que é hora de invocar os dois na mesma cena blasé (ou anárquica) do cinema francês. Na meia luz de um bar no subúrbio, Benjamin elogia a beleza extraordinária de Modotti e quer saber se Paris é seu último destino. Modotti sorri brevemente. Escuta do seu interlocutor uma história fabulosa sobre um amigo de Benjamin fumador de haxixe e arrisca querer saber sobre o que escreve o homem enfiado num colete de lã ostentando uma cabeça grisalha. Benjamin fala sobre sua teoria materialista da arte, sobre o empobrecimento da experiência na modernidade e sobre o fenômeno da fotografia. Tina comenta sobre um artigo que publicou na revista Mexican Folkways após suas imagens terem ilustrado reportagens mundo afora. Pela descrição, Benjamin reconhece algumas delas, mas se espanta com sua ignorância a respeito da autoria. O que intriga Modotti, de fato, é saber que aquele sujeito, estranho até duas horas atrás, havia dedicado tanto tempo a teorizar sobre fotografia quanto ela a fazer fotografia, criando essa arte “chamuscada de realidade”. Em poucos dias Modotti viajaria à Espanha. Viajava sem saber que anos depois morreria na condição de clandestina no México. Ficava Benjamin sem saber que para onde iria aquele espírito revolucionário morreria ele, anos mais tarde, refugiado do nazismo.
ComparTRILHAmento III, por Lívia Rangel
Andante de profundidades
O surdo cuspir para fora, o oco gozar para dentro, a gruta do estômago insaciável, a temperatura febril de quem tem a silhueta da alma desenformada do corpo. Concordo com aqueles teóricos do exílio que assimilam à condição expatriada a potencialidade poética de, no esgarçar dos laços, desenvolver na encruzilhada de dois ou mais mundos o senso crítico e a veia criativa. Havendo sempre os que se consomem ressentidos e os que se embrenham inconformados, são esses últimos os que ladrilham futuros. Um dia meu pai me disse: “não somos jardineiros, somos viajantes”. Eu fiquei me perguntando se éramos o que ele dizia por escolha ou contingência. Depois a coisa se entranhou tanto que nunca mais vi uma roda passar sem ter vontade de partir junto, subir e desencarnar das terras em que crescia. Sonhava miragens muito distintas. E sem querer saber a razão, abracei minha própria causa: andante de profundidades. Ninguém me possuía mais do que eu mesma. Irrompi no espaço entre o chão e a sobra do tempo. Caí aos solavancos, toda maltratada de pedras, infinita de novo. No momento em que cruzei as quatro pilastras soube que não tinha volta. Havia arbustos, capivaras, águas de reflexo, chocalhos nos tornozelos, ruas de ir, beiradas para equilibrar, palavras fazendo sentido. Tudo tão absurdo como as máquinas. Vislumbres dolorosos de ser mulher, os discos arranhados na boca dos homens e uma multidão colorida afogada no meio. Sou artista das palavras, não vou me defender. Mas as mulheres e as multidões precisam erguer barricadas, revidar. Quem desaparece vira herói ou só mesmo um corpo inválido debaixo da terra? Acho que vira memória, fenômeno que sempre pode ser muito útil, mesmo sem utilidade nenhuma. Quanto vocabulário: pe-rempto-ri-a-men-te. Lembro de aprender a palavra sexismo, de achá-la óbvia, um lembrete na porta da geladeira. Era sexismo na educação física, racismo na aula de história, autoritarismo nas questões de português. Artista da palavra fui aprendendo a nomear: ai de mim, que [in]felicidade! A vizinha que pegou medo do marido, chamou a polícia e trancou as crianças no quarto. Hematomas a caminho da Igreja. Relâmpagos me conduzem no escuro. Nunca mais escrevi a lápis. A máquina fotográfica que minha mãe herdou do pai dela. A mulher é curiosa. Fez até curso. Analógica, aguçando meu gosto por antiguidades. Ganhei patins, o computador e a câmera portátil foram para a mais velha. Até ela crescer um pouquinho e passar suas roupas para as duas mais novas. Queria namorar, eu, escrever e ter dinheiro para revelar filmes. Contradições irreveláveis. Tinha um slogan feminista inventado antes de eu nascer: “o pessoal é político”. Minha vizinha teria gostado de tê-lo na ponta da língua sempre que alguém dissesse a maldita expressão culinária: “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Fico imaginando a briga virando um pudim. A hipocrisia adoece. A realidade vicia e esgota. É fácil enclausurar o olho impedindo que veja para além da sujeira cinza. Sei disso porque vedei meus olhos com gesso. Não é a hora que passa rápido, é a vida, meu deus do céu! Não quero morrer sem ter tentado de tudo. Arrumei a mochila, comprei uma cadeira num ônibus alado, foram três conduções. Eu gosto de jardineiros, mas não sou uma. O que nós mulheres estávamos fabricando quando pensavam que obedecíamos? Existir é arte suficiente, por isso os artistas catam e remontam belezas que já existem, criando o novo, a insurgência. Desembarquei finalmente na praça, subi as pedras, dei razão ao horizonte lá de cima. Com uma roupa confortável, bati de porta em porta: posso tirar um retrato?