ComparTRILHAmento III, por Lívia Rangel
Andante de profundidades
O surdo cuspir para fora, o oco gozar para dentro, a gruta do estômago insaciável, a temperatura febril de quem tem a silhueta da alma desenformada do corpo. Concordo com aqueles teóricos do exílio que assimilam à condição expatriada a potencialidade poética de, no esgarçar dos laços, desenvolver na encruzilhada de dois ou mais mundos o senso crítico e a veia criativa. Havendo sempre os que se consomem ressentidos e os que se embrenham inconformados, são esses últimos os que ladrilham futuros. Um dia meu pai me disse: “não somos jardineiros, somos viajantes”. Eu fiquei me perguntando se éramos o que ele dizia por escolha ou contingência. Depois a coisa se entranhou tanto que nunca mais vi uma roda passar sem ter vontade de partir junto, subir e desencarnar das terras em que crescia. Sonhava miragens muito distintas. E sem querer saber a razão, abracei minha própria causa: andante de profundidades. Ninguém me possuía mais do que eu mesma. Irrompi no espaço entre o chão e a sobra do tempo. Caí aos solavancos, toda maltratada de pedras, infinita de novo. No momento em que cruzei as quatro pilastras soube que não tinha volta. Havia arbustos, capivaras, águas de reflexo, chocalhos nos tornozelos, ruas de ir, beiradas para equilibrar, palavras fazendo sentido. Tudo tão absurdo como as máquinas. Vislumbres dolorosos de ser mulher, os discos arranhados na boca dos homens e uma multidão colorida afogada no meio. Sou artista das palavras, não vou me defender. Mas as mulheres e as multidões precisam erguer barricadas, revidar. Quem desaparece vira herói ou só mesmo um corpo inválido debaixo da terra? Acho que vira memória, fenômeno que sempre pode ser muito útil, mesmo sem utilidade nenhuma. Quanto vocabulário: pe-rempto-ri-a-men-te. Lembro de aprender a palavra sexismo, de achá-la óbvia, um lembrete na porta da geladeira. Era sexismo na educação física, racismo na aula de história, autoritarismo nas questões de português. Artista da palavra fui aprendendo a nomear: ai de mim, que [in]felicidade! A vizinha que pegou medo do marido, chamou a polícia e trancou as crianças no quarto. Hematomas a caminho da Igreja. Relâmpagos me conduzem no escuro. Nunca mais escrevi a lápis. A máquina fotográfica que minha mãe herdou do pai dela. A mulher é curiosa. Fez até curso. Analógica, aguçando meu gosto por antiguidades. Ganhei patins, o computador e a câmera portátil foram para a mais velha. Até ela crescer um pouquinho e passar suas roupas para as duas mais novas. Queria namorar, eu, escrever e ter dinheiro para revelar filmes. Contradições irreveláveis. Tinha um slogan feminista inventado antes de eu nascer: “o pessoal é político”. Minha vizinha teria gostado de tê-lo na ponta da língua sempre que alguém dissesse a maldita expressão culinária: “em briga de marido e mulher não se mete a colher”. Fico imaginando a briga virando um pudim. A hipocrisia adoece. A realidade vicia e esgota. É fácil enclausurar o olho impedindo que veja para além da sujeira cinza. Sei disso porque vedei meus olhos com gesso. Não é a hora que passa rápido, é a vida, meu deus do céu! Não quero morrer sem ter tentado de tudo. Arrumei a mochila, comprei uma cadeira num ônibus alado, foram três conduções. Eu gosto de jardineiros, mas não sou uma. O que nós mulheres estávamos fabricando quando pensavam que obedecíamos? Existir é arte suficiente, por isso os artistas catam e remontam belezas que já existem, criando o novo, a insurgência. Desembarquei finalmente na praça, subi as pedras, dei razão ao horizonte lá de cima. Com uma roupa confortável, bati de porta em porta: posso tirar um retrato?