9 a 28 de janeiro de 2022
Edith Derdyk tem uma afinidade quase que biológica com o desenho, matriz e força motriz que impulsiona a sua pesquisa artística desde idos da década de 80.
O núcleo poético da sua produção gira em torno da linha e suas distintas materialidades, manifestas em várias linguagens, entendendo o desenho como estrutura óssea do pensamento visual, uma linguagem que atravessa os campos e as mídias: instalação, fotografia, vídeo experimental, gravura, livro de artista, textos poéticos e de caráter ensaístico.
Atualmente coordena a pós-graduação “Caminhada como Método para Arte e Educação” na Casa Tombada. O ato de caminhar não deixa de ser também uma linha estendida no espaço, atravessando ambiências, delineando contornos no território, cartografando o pensamento da paisagem natural e cultural.
January 9 – 28, 2022
Edith Derdyk has an almost biological affinity with drawing, matrix and driving force that drives her artistic research since the 1980s.
The poetic core of her production revolves around the line and its different materialities, manifested in various languages, understanding drawing as a bone structure of visual thinking, a language that crosses fields and media: installation, photography, experimental video, engraving, artist’s book, poetic texts and essays.
She currently coordinates the postgraduate course “Walking as a Method for Art and Education” at Casa Tombada. The act of walking is also an extended line in space, crossing ambiences, outlining contours in the territory, mapping the thought of the natural and cultural landscape.
“A propulsão da minha residência no Mirante Xique-Xique seguiu por duas vertentes: a primeira nasce do desejo de pesquisar o local onde a exploração sistemática da terra através do garimpo inicia suas atividades no Brasil, século XIX, notadamente em Igatu. Já havia este esboço prévio quando fui para a Residência em Mirante. A segunda vertente se dá exatamente a partir do dispositivo do ato de caminhar como modo de acessar a experiência do corpo neste território: ler as marcas da paisagem através do deslocamento físico, cartografar as inscrições das ações humanas num local icônico cravado e cavoucado na serra. O confronto do meu corpo urbano com as camadas históricas tão demarcadas – seja pela atividade exploratória do garimpo, seja pela tessitura do ambiente da Chapada Diamantina com sua exuberância e sua aspereza -, convocou a urgência para rastrear, sinalizar, cartografar as espessuras do tempo, capturar as marcas indiciadas pelas ruínas, regos e amontoados de pedras que visibilizam a energia humana ali desprendida, a partir do meu próprio corpo andante.
Ao atravessar as ambiências fui aprendendo a ler estas camadas paradoxais entre a beleza natural e a dramaticidade da condição humana ali composta, dada pelo garimpo. Por empatia natural, me aproximei de caminhantes nativos, principalmente de Tuninha – mulher negra, ativista na cidade, agregadora, leitora da flora, das raízes, das forças do lugar, cantante – e ela me diz numa manhã: “o meu destino é caminhar”. Aprendi que os amontados que são os resíduos das pedras que não servem mais, abrindo espaço para a busca das pedras preciosas, indicam também a construção dos pequenos desvios dos fluxos da água – os regos, bem como marcam a presença das moradias de pedra, agora em ruínas. A partir destas constatações, numa andança quase de detetive para completar meu mapa imaginário em busca do contorno destas memórias, emergiu o meu “destino: os montueiros – um nome sem nome que varia conforme a dicção de quem fala e palavra que não achei no dicionário. Os montueiros – se tornam o leitmotiv da pequena intervenção que resolvi fazer nesta paisagem tão dominada e tão poderosa.
Dentre tantos lugares vistos, selecionei um lugar bem árido, refletindo as condições rudes e toscas do trabalho, do enfrentamento dos corpos ‘escravos’ na atividade do garimpo. Depois de quase duas semanas localizei o espaço numa trilha chamada “Caminho da Forca”, nome literal que já sugere a cena. Este lugar apresenta um espalhamento desses montes de amontoados em tudo quanto é canto, demarcando bem por onde o garimpo passou – resíduos cinzentos, pedras expostas, abandonadas, extraídas da terra. Ao fundo, três torres de pedra naturais que depois eu soube se tratar de uma imagem bem representativa de Igatu. Foi neste lugar que realizei uma pequena intervenção, que entendi como “exercícios de de-composição” ou “notações coreográficas”, práticas de desenhos efêmeros feitos num caderno. Utilizei a linha branca para designar o lugar.
A linha é o núcleo poético em torno do qual todo o meu trabalho circula. A linha ganha distintas conotações, várias camadas de sentido dependendo do tipo de atuação no espaço que acontece. Enrolar as pedras com essa linha branca garimpou a força de encapsular, aconchegar, encasular, proteger ou guardar, tramar, singularizar uma pedra entre tantas pedras perdidas. Pedra-casulo, conectiva, em busca da memória do todo de um corpo, agora fragmentado. A pedra “alinhada” vai refletindo a luz solar do lugar, tornando-a preciosa, ao se aproximar formalmente da pedra-branca, o diamante, a pedra que brilha e é “avistada” no escuro e “invultada” no claro.
Naturalmente essas instalações ao ar livre são efêmeras. As linhas se entrecruzam convocam a urgência da passagem do tempo. A repetição do gesto, provocando o acúmulo e a sobreposição das linhas, reflete a ação insistente do garimpo. Tais procedimentos construtivos também remetem à imagem das fiandeiras e tecelãs, das mulheres bordadeiras presentes nas calçadas da comunidade, as mulheres idosas tecendo, fazendo bilro, crochê, alinhavando, enrolando, costurando repetidamente – essas mãos que caminham sem sair do lugar. Enrolar a pedra com linha branca é um gesto imbuído do sentido da costura, do bordado, da teia, da linha que liga e conecta, da rasura, da presença arcaica das culturas tradicionais que se alongam e se estendem no tempo.
Estas “notações coreográficas” só poderiam surgir a partir da minha vivência de três semanas, imersa em Igatu, situação proporcionada pelo Mirante Xique-Xique. A pequena intervenção indicia a minha breve passagem, instaurando vestígios no espaço e, quem sabe, nos tempos.
A natureza dessa residência é muito aberta, fluida, orgânica. A minha experiência foi totalmente impregnada pelo impulso do corpo andante: num primeiro momento caminhar de forma flutuante, mantendo uma escuta ativa do lugar, me inscrevendo nas instâncias daquele território marcado. As narrativas dos nativos foram lentes de aumento, estendendo a ética e a ótica daquela paisagem natural mixada com a profunda intervenção das ações humanas predatórias – atualizando nossa travessia épica, marcada pela expropriação da terra.
Agora só me resta voltar para que os desenhos se projetem em futuras ativações. Por hora, o que fiz lá ficou à mercê do tempo.”
Edith Derdyk
São Paulo, 3 de fevereiro de 2022